Anos 1980: Um Lugar para Ursos, Barbies e Putas | entrevista Beto de Jesus

“As gays casadas, hoje, elas adotam e elas começam a falar mal, porque elas são família agora. E elas começam a falar mal das gays que não são família. Sim, é reprodução da reprodução, um filme barato. É bem chato.”

(Foto: Beto de Jesus / Créditos: reprodução do Facebook)

Série anos 1980: Beto de Jesus

Os anos 1980 foram uma década crucial para a comunidade LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e mais) no Brasil, marcada por avanços, resistências, desafios e tragédias. 

O surgimento do vírus HIV e a epidemia de Aids tiveram um impacto significativo, levando ao ativismo pela igualdade e prevenção. A década testemunhou a fundação de novos movimentos homossexuais e a criação de coletivos, como o Grupo Gay da Bahia (em 1980), que luta pela visibilidade e direitos LGBT+. 

Em 1985, a desclassificação da homossexualidade, pelo Conselho Federal de Psicologia brasileiro, como doença e as discussões sobre direitos civis ganham destaque. O cenário cultural também se transformou, com artistas abordando a temática LGBT+ em diversas formas de expressão. 

Contudo, em 1987, episódios de violência policial contra travestis e transexuais em São Paulo, como a “operação tarântula”, destacaram a resistência necessária. A ação tinha como objetivo “higienizar” a capital paulista e retirar das ruas as pessoas transgêneros acusadas de crime de “vadiagem” e “ultraje ao pudor público”. Além de crime de “contágio venéreo”. A sociedade conservadora acreditava que a homofobia e a transfobia combateriam o HIV, mas a história e a ciência desmentiram essa ideia. Sendo assim, a repressão policial – apesar de todos os danos que causou – serviu para fortalecer ainda mais as lideranças sociais na comunidade LGBT+, impulsionando a reivindicação por direitos de equidade de gênero.

Uma das figuras icônicas e remanescentes dessa época é Beto de Jesus. Ele  foi um dos fundadores da Parada do Orgulho Gay de São Paulo (1996) e  coordenador do evento entre 1999 a 2002. Beto de Jesus emerge como uma figura marcante e resiliente desse período de forte repressão, como o final da ditadura, e a fase de abertura democrática no Brasil (1977 a 1985).

Homem gay, feminista, socialista e anti-racista, como ele mesmo se define, Beto traz uma ampla experiência nos movimentos sociais. Nasceu em outubro de 1962, no bairro de Ermelino Matarazzo, uma região afastada da área central da capital paulista, que à época era considerada uma zona rural.

Muito cedo, declarou-se homossexual para a família, aos 16 anos, em uma época em que o tema era extremamente um tabu. Com formação em sociologia e teologia, além de especialização em educação, ele iniciou seu ativismo por direitos LGBT+ em 1990, já tendo participação em outras causas sociais.

(Foto: Beto de Jesus / Créditos: reprodução do Facebook)
(Foto: Beto de Jesus / Créditos: reprodução do Facebook)

Na atualidade, em 2015 (quando esta entrevista foi concedida), ele é secretário geral do Instituto Edson Néris, uma organização sem fins lucrativos voltada para os direitos LGBT+. Neste mesmo ano, eu tive a oportunidade de entrevistá-lo para minha pesquisa sobre as memórias e vivências de homens gays da cidade de São Paulo.

Entrevista c/ local

O nosso encontro aconteceu na icônica Avenida Dr. Vieira de Carvalho, no centro da capital paulistana, um lugar reconhecido como um ponto de encontro para a comunidade LGBT+, especialmente os homossexuais masculinos. Continue Lendo “Anos 1980: Um Lugar para Ursos, Barbies e Putas | entrevista Beto de Jesus”

Anos 1980: Tesão com Risco de Vida | HIV/ AIDS

“Foi traumático vê-lo morrer. Definhar. Era horrível ver as coisas que aconteciam com ele. Eu imaginava que tudo aquilo iria acontecer comigo também.” – “G.A.”

(Foto: banco de imagens).

Série anos 1980: entrevista com “G.A.”

Naquele ano de 2011, eu estava em busca de fontes para a minha investigação sobre o tema HIV/Aids e conheci o GIV (Grupo de Incentivo à Vida). Trata-se de uma ONG, que ajuda pessoas que convivem com o vírus, criada em 1990.

Eu descobri a organização pela internet, num simples Google. Meu foco principal era conhecer personagens homossexuais masculinos soropositivos, da cidade de São Paulo, e escrever a respeito da trajetória do HIV/Aids. É quase impossível não abordar este assunto no meio homossexual masculino. Principalmente, quando a doença, ainda desconhecida, no seu auge,  teve o apelido de “peste gay”

Mas antes, uma viagem no tempo é necessária. Os dados a seguir, de reconstituição cronológica, são uma compilação de informações obtidas por meio do acesso virtual e/ou físico a documentos disponíveis para conhecimento público. Bem como livros, entrevistas, sites de instituições públicas brasileiras, documentários, palestras, além de reportagens da época e algumas outras recentes. Todas as referências fazem uma recapitulação dos principais pontos no desenvolvimento do HIV/Aids, por entre as últimas décadas. 

Cronologia do HIV/Aids

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Anos 1980: Adeus, Censura e Olá, Politicamente Correto | Entrevista Mario Mendes

“[…] Querido… Preto, pobre e gay. Eu tenho os três. E eu sobrevivi. […]”

(foto: Mario Mendes "[...] Querido... Preto, pobre e gay. Eu tenho os três. E eu sobrevivi.[...]" / créditos: reprodução do instagram @marmendes)

Série anos 1980: Mario Mendes

Mario Mendes é um homem gay, preto, do tipo físico gordo e que aos cinquenta e cinco anos (2014) sabe narrar suas memórias, com a dramaticidade de um ator e a honestidade necessária a um escritor. Ele sempre quis ser jornalista, desde que lia as histórias em quadrinhos do famoso herói branco estadunidense, Super-Homem, que tinha uma dupla identidade, como Clark Kent, um jornalista recém-chegado do interior do estado do Kansas. E que trabalhava numa redação ao lado da sua amada repórter Míriam Lane, assim era chamada a personagem na adaptação brasileira de 1940 e 1950. “Era uma redação, eu achava aquilo interessante, a minha cabeça de criança, ‘Nossa… uau! Eu sei que não existe o Super-Homem, mas existe jornalismo’, então, sempre foi uma coisa que me pegou, e eu falava assim: ‘jornalista viaja, jornalista conhece gente famosa, jornalista vai a lugares bacanas’, isso me chamava a atenção.” – ele me contou durante nossa entrevista. 

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Anos 1980: Drag, Parada e Alibãs | Entrevista Kaká Di Polly

“Meu amor, agora você vai ter que me matar, porque eu sou viado! Agora, pode atirar, atira se você é homem!”

(foto: Kaká Di Polly na Avenida Paulista, fingiu um desmaio e ajudou que a primeira edição da Parada LGBT+ em 1997 ocorresse sem repressão policial / créditos: Acervo Kaká Di Polly)

Série anos 1980: Kaká Di Polly

Kaká Di Polly foi uma drag e continua sendo uma lenda viva, desde os anos 1980, na memória LGBT+ da cidade de São Paulo. Nessa grande metrópole, ela testemunhou a ditadura militar (1964-1985) e a violência policial acentuada para com as travestis e transexuais, a ascensão da vida noturna gay, a tragédia causada pelo vírus HIV, além da primeira Parada do Orgulho LGBT+ paulistana, em que ela deitou na Avenida Paulista para que o evento ocorresse.

No ano de 2014, eu assisti ao documentário São Paulo em Hi-Fi”(2014), de Lufe Steffen, um filme sobre a noite gay das décadas de 1960, 1970 e 1980. Um compilado de memórias de personagens extraordinários dessas épocas, que falaram sobre o glamour e paetê nas boates, mas também dos primeiros movimentos homossexuais organizados. E dentre os entrevistados, estava Kaká Di Polly ou Carlos Alberto Polycarpo, seu nome de nascido – mas que nunca foi popular – Kaká foi o alívio cômico do longa e a plateia se rendeu em gargalhadas.  

Só que rir sentado numa poltrona de cinema, não foi o suficiente para mim. Então, enviei uma mensagem a Kaká pelo Facebook e marcamos uma entrevista. 

(foto: Kaká Di Polly / créditos: Acervo Kaká Di Polly)
(foto: Kaká Di Polly / créditos: Acervo Kaká Di Polly)

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Anos 1970: No sofá da Biá | Entrevista Eduardo Albarella ou simplesmente Miss Biá

“As pessoas iam para ver o show, pela curiosidade de saber o que era e como era um homem vestido de mulher.”

Eduardo Albarella ou simplesmente Miss Biá no palco da boate Nostro Mondo nos anos 90. (Foto: reprodução da internet).

Série anos 1970: Eduardo Albarella ou simplesmente Miss Biá

Miss Biá ou Eduardo Albarella foi um ator transformista de grande relevância na cena LGBT+ paulistana. O artista começou sua carreira ainda nos anos 1960, apresentando números de música, dança e comédia baseados no teatro de revista.

Ele enfrentou a ditadura militar no país e completou sessenta anos de carreira (em 2020) se apresentando, nos mais diversos palcos de boate, gays ou não, de São Paulo.

Entre os anos de 2014 e 2015, eu me interessei por este personagem após assistir ao documentário “São Paulo em Hi-Fi” (2014) de Lufe Steffen. Me pareceu extraordinário alguém com tanta longevidade na cena LGBT+ paulistana falar de suas experiências, como primeiro namorado, repressão militar e a passagem do tempo no que diz respeito ao trabalho como ator transformista. Era um rico material para preservação de memória, ainda que naquele momento eu não estivesse muito amadurecido nesse aspecto.

Numa primeira abordagem, Biá cancelou nossa entrevista, pois se lembrou que tinha combinado de assistir uma peça teatral. Assim, insisti novamente, e nós reagendamos. E foi assim que fui parar no sofá da Biá.

Nosso papo começa falando sobre suas descobertas iniciais, no amor e no palco.

Ele diz que sempre foi gay desde criança e tem esse instinto homossexual. As primeiras experiências de paquera e encontro surgiram dentro de um cinema no bairro do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Ele achava o gerente do lugar uma graça e investia em tentativas para se aproximar dele. Mas foi um outro rapaz que acabou chamando a sua atenção de uma forma bastante inusitada. 

Certa vez, em uma de suas idas ao cinema, a luz acabou. Ele permaneceu em sua poltrona, as luzes voltaram a acender, ele olhou para trás e percebeu um homem. “Credo, que homem feio!” – foi seu primeiro pensamento ao olhar para pessoa que estava no mesmo recinto. “Tem coisas que são interessantes, você olhar para trás, numa multidão e a pessoa te chamar a atenção por ser feio.” – ele comenta.

Quando as luzes acenderam e o filme continuou, o rapaz feio se levantou e sentou-se ao seu lado. Começou a puxar assunto, a iniciativa não deu em nada, não houve uma cantada direta.

Passados alguns meses, houve um reencontro em outro cinema. O rapaz feio se encarrega novamente de tomar uma iniciativa e puxar assunto. “Já não achei mais tão feio. E ele realmente não era feio. Tinha que existir uma maneira dele me chamar a atenção, se ele não me chamou a atenção porque ele era lindo, ele me chamou a atenção pela feiura que não existia.” – ele conta.

Depois de um tempo de conversa, o rapaz já não tão feio pergunta: “Será que eu posso dar um beijo na sua boca?”. Meu entrevistado conta que nunca ninguém o havia beijado antes. E foi então o primeiro beijo.

Eles continuaram saindo. Aos poucos, o jovem baixinho descobre que o rapaz, agora bonito, morava perto de sua casa e era irmão do tal gerente do cinema que ele achava uma graça. O recém descoberto vizinho, também, era casado. Mesmo assim, a história de amor que começou numa sala de cinema durou cerca de seis a oito anos.

“Esse foi o primeiro. Mas depois teve um rosário. ” – nós rimos.

A entrevista

Miss Biá ou Eduardo Albarella mora em um apartamento confortável no centro da cidade, precisamente na Avenida Dr. Vieira de Carvalho, República, centro de São Paulo. Eu me admiro com a decoração do lugar, o espaço tem muitas peças de referência católica. A entrada tem um altar com imagens da Virgem Maria e de Jesus Cristo. Além de um quadro com uma fotografia dele vestido como ator transformista.

(foto: Lançamento do Filme São Paulo em Hi-Fi, Miss Biá e Adriano Sod/ créditos: Edu Lima)
(foto: Sessão do documentário “São Paulo em Hi-Fi”, 2014, de Lufe Steffen, Miss Biá e Adriano Sod/ créditos: Edu Lima/2016)

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Anos 1970: A Dama da Noite Gay de SP | Entrevista Elisa Mascaro

“[…] todo dia tem uma pessoa com dezoito anos que é homossexual e quer procurar a turma dele.”

(foto: Elisa Mascaro/  créditos: Acervo Elisa Mascaro, curador Marcelo Bértoli)

Série anos 1970: Elisa Mascaro

Elisa Mascaro foi uma das personalidades mais importantes da história LGBT+ de São Paulo e do Brasil. No anos 1970, num período de repressão pela ditadura militar, ela acolheu a comunidade homossexual, reconheceu transformistas, travestis e transexuais como artistas, ofereceu trabalho com carteira assinada e todos os direitos, além de ter sido mais que uma patroa. Elisa foi amiga e como se não bastasse, ela se transformou em família de pessoas que foram abandonadas à própria sorte, discriminadas e renegadas por seus próprios familiares.

Em uma época de regime militar no Brasil, mesmo em uma década de abertura lenta para uma possível democracia, ainda havia muita repressão, preconceito e discriminação de diversas formas. As perseguições policiais às travestis, transexuais e homossexuais, considerados como seres anormais, eram comuns. Bem como as demissões de profissionais pelo mesmo motivo, além da censura a jornais que pudessem publicar matérias classificadas como ofensivas à moral e aos bons costumes. A exemplo deste último, destaca-se o caso de grande repercussão da “Coluna do Meio”, escrita pelo jornalista Celso Curi, no jornal A Última Hora, em 1977. Dentre outras ações coercitivas.

(foto: "Coluna do Meio/ Reprodução de imagem do documentário "São Paulo em Hi-Fi", 2014, de Lufe Steffen)
(foto: “Coluna do Meio/ Reprodução de imagem do documentário “São Paulo em Hi-Fi”, 2014, de Lufe Steffen)

Alguns dos fatores que instigaram o processo de redemocratização do país, a passos lentos, foram o crescimento de movimentos opositores ao regime militar, a crise econômica daquele momento e as denúncias de crimes cometidos por militares contra a humanidade. O que possibilitou algumas mudanças sociais que foram toleradas durante o período, como por exemplo as boates com shows de transformistas, na capital paulista.

Essas profissionais eram classificadas como artistas, desde que “se montassem” (se caracterizassem) dentro da casa de show. Do contrário, poderiam ser presas por usarem maquiagem, peruca, ou terem trejeitos afeminados em via pública. E se estivessem sem documento de identidade e carteira de trabalho, sem estar assinada com um emprego vigente, poderiam ser autuadas por vadiagem.

(foto: Capa do jornal "Lampião da Esquina"/ Reprodução de imagem do documentário "São Paulo em Hi-Fi", 2014, de Lufe Steffen)
(foto: Capa do jornal “Lampião da Esquina”/ Reprodução de imagem do documentário “São Paulo em Hi-Fi”, 2014, de Lufe Steffen)

Na prisão e nas delegacias, as travestis e transexuais sofriam todo tipo de violência, desde humilhações por xingamentos até atos de tortura, como o prensamento de seus seios, em gavetas que eram fechadas com força, ao ponto deles estourarem.

Mas a vida de algumas dessas pessoas, consideradas como anormais, estava prestes a mudar por completo

(foto: Capa do jornal "Lampião da Esquina"/ Reprodução de imagem do documentário "São Paulo em Hi-Fi", 2014, de Lufe Steffen)
(foto: Capa do jornal “Lampião da Esquina”/ Reprodução de imagem do documentário “São Paulo em Hi-Fi”, 2014, de Lufe Steffen)

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